Realities de confinamento no Brasil: entretenimento, alienação ou estudo da sociedade?
Por Aline Carlin, Ana Carolina Micheletti, Camila Lutfi, Maísa Balsan, Mariana Torezan e Thaís Bueno, alunas do 1° JOA
Já imaginou ser vigiado 24 horas por câmeras que estão em todos os lugares, observando minuciosamente cada uma de suas ações?
U m dos clássicos da literatura mundial nos mostra este exato cenário — 1984, de George Orwell. A história se passa no mesmo ano do título, em um futuro distópico no qual o Estado impõe um regime extremamente totalitário para a sociedade, através da vigilância do Grande Irmão. No decorrer do livro, o personagem Winston Smith se vê cercado por um monitoramento total de suas ações. Entretanto, engana-se quem pensa que essa vigilância está restrita às histórias ficcionais.
Reality shows de confinamento são um exemplo claro dessa vigilância que, por muito tempo, ficou restrita à ficção. No entanto, quando esses programas surgiram, trouxeram consigo uma fama muito grande. Ver pessoas com nenhuma afinidade entre si convivendo juntas foi considerado algo inovador para a mídia e para o público da televisão - no início do milênio, criando uma categoria de programa de entretenimento procurado por muitos telespectadores.
Além de terem uma enorme fama e grandes índices de audiência — ultrapassando, inclusive, jogos de Copa do Mundo —, esses programas também trazem debates sobre o comportamento dos participantes confinados e dos próprios espectadores. Com isso, assuntos como a alienação proporcionada pelos realities e o reflexo social no confinamento começaram a ganhar força, sendo discutidos cada vez mais nos dias atuais. Diariamente, esses realities atraem mais visualizações, e muitas pessoas se tornam fãs tanto dos programas como também dos participantes.
“Muitas coisas importantes são ditas em realities”
O amor pelos realities de confinamento na sociedade é enorme e muitas vezes questiona-se o porquê disso. A estudante Maria Eduarda de Almeida Kehl relata um pouco de sua experiência como telespectadora desses realities e abre o jogo sobre o que a faz gostar deles:
“Eu sempre assisti. Desde pequena eu ia pra praia com a minha família e eles sempre gostaram de ver Big Brother, eu ficava lá com eles e então peguei o hábito de assistir. Eu acho que é uma forma de entretenimento, de esvaziar a cabeça”.
A estudante também comentou sobre como os realities podem agregar informação aos telespectadores: os programas que antes eram vistos apenas como alienação, e até como algo fútil, hoje têm a capacidade de levar informações importantes para a grande audiência que possuem.
“Em A Fazenda, teve a Raissa que tinha borderline, e muitas pessoas descobriram e ficaram sabendo mais desse transtorno por causa do programa. Então eu acho que não é só uma forma de entretenimento, a gente acaba, sim, tendo algum conhecimento por causa do reality show.”
Maria Eduarda também acredita que haja manipulação nesses programas, mas comenta que hoje o público influencia mais no jogo e está atento a tudo o que acontece. Ela conclui que, no final, a decisão é, sim, dos telespectadores.
“Se fosse entretenimento, não precisaria ter prêmio para quem ganhasse”
Embora sejam muito famosos, os realities de confinamento como Big Brother, A Fazenda, De Férias com o Ex, Power Couple e The Circle também são alvo de críticas por parte de muitos. A analista de sistemas Marília Lopes explicita sua visão negativa sobre esses programas quando perguntada sobre o porquê de não valer a pena assisti-los:
“Para mim não vale a pena porque eu acho que é uma situação forçada. você confinar pessoas e filmá-las o tempo inteiro, além de torná-las vulneráveis, torna-as também pessoas diferentes da vida real. Então eu não vejo nenhuma vantagem em assistir esses realities”.
No entanto, Marília nem sempre foi contra realities de confinamento. Ela diz ter assistido as primeiras cinco edições do Big Brother Brasil e confirma que se divertiu com as duas primeiras, quando as brigas eram mais comuns e o público era menos imerso no programa: “Você assistia a alguns trechos, se divertia naquele intervalo de 40–50 minutos e acabou”. Diferentemente das mais recentes edições, que ocasionaram brigas e cancelamentos por parte dos internautas, que ficam atentos aos realities em tempo integral, defendendo na internet, com unhas e dentes, os seus participantes favoritos.
Em razão disso, a analista de sistemas argumenta que sua visão mudou, pois os programas se tornaram um meio de alienação para os espectadores. A realidade do confinamento é outra, as relações construídas lá dentro são superficiais e apenas existem para o público achar que tudo é real.
Além disso, hoje em dia ela não percebe mais os realities como uma forma de entretenimento para o público:
“Na minha visão, se fosse entretenimento, não precisaria ter prêmio para quem ganhasse. Então eu já acho que programas que entretêm o público não deveriam dar prêmios aos vencedores, porque senão, não vira entretenimento, vira torcida, então você está começando a obrigar que o público participe. Ele não está mais se entretendo, e sim participando. A partir do momento que existe votação e existe um prêmio associado, não é mais entretenimento”.
“É um choque assim que a gente sai”
Uma coisa é fato: todos os participantes falam que assistir de fora como um telespectador é uma experiência completamente diferente de estar confinado. Assim diz Rízia Cerqueira, ex-participante do BBB 19, que revela aqui um pouco de sua experiência após o reality:
“A experiência impactou em várias coisas, minha vida mudou de uma hora pra outra. Eu entrei sendo conhecida pelas pessoas da minha cidade e quando saí o Brasil todo me conhecia”.
Mais sobre sua personalidade e seus gostos são mostrados no seguinte vídeo de apresentação, gravado para o Big Brother Brasil de 2019:
Questionada sobre o que mudou em sua vida após o programa, a jornalista, que estava há dois anos sem trabalhar, conta que amadureceu e aprendeu bastante no Big Brother. Comenta também que, pouco tempo após sair do reality, se mudou para o Rio de Janeiro, teve um filho com seu atual namorado e também arranjou um emprego: “Era o que eu mais queria”.
Ela relatou fatos chocantes do processo de pré-confinamento, como não poder utilizar relógios nem assistir à televisão, além de contar que esse período inclusive deixou-a um pouco ansiosa. Assim como outros participantes, ao final, ela afirma que é melhor vivenciar do que apenas assistir:
“Mas muitas coisas, só passando para saber, não é bom contar muita coisa porque perde a graça. Uma das graças do programa é todo esse processo, não só entrar na casa. Então essa eu deixo a vida responder pra quem for entrar na casa”.
“É muito intenso, é intenso tanto pra gente como para o pessoal que está confinado”
Os realities de confinamento, ao contrário do que muitas pessoas acreditam, não são compostos apenas pelos participantes e pela audiência. Existe toda uma equipe por trás que lida com a produção desses programas, participando desde o processo de seleção de participantes até a edição de VT s, preparando cada momento que os telespectadores irão assistir. O produtor André H.C. (pseudônimo do produtor entrevistado, pois ele preferiu manter sua identidade anônima), que trabalha desde 2011 com esses realities e participou da produção das edições 11 e 12 do programa A Fazenda, relata sua experiência por trás das câmeras:
“É bastante corrido. Eu estou na parte do conteúdo, onde eu basicamente via tudo o que era captado pelas câmeras e cuidava de uma ‘linha do tempo’, para ver e entender o que os participantes fizeram nesses dias todos. É aquilo que a gente fala: é muito intenso, é intenso tanto pra gente como para o pessoal que está confinado, ou seja, também é intenso para quem está do lado de fora”.
Independente da visão adotada, a produção de um reality não é um processo fácil. Tudo passa por várias etapas até que o produto final chegue à televisão e os telespectadores possam aproveitar o reality. Seguindo essa linha, André também conta que a produção toma, sim, alguns cuidados éticos durante o processo. O que vai ao ar tem que ser algo que traga audiência, mas, ao mesmo tempo, eles evitam colocar os participantes em situações humilhantes.
“A gente coloca aquilo que rende ao personagem. Por exemplo, você não coloca a pessoa no banheiro, porque isso não é interessante nem para o público nem para ninguém.”
Quando perguntado sobre a mudança nesses programas nos últimos anos, o co-produtor comenta sobre o engajamento nas redes sociais. Para ele, essas redes popularizaram os realities, então acredita que elas foram responsáveis por levar a um “boom” desse tipo de programa:
“Eu acredito que o fato de você postar nas redes sociais uma gravação de tela gera um engajamento, porque aí sites como Gossip Do Dia e Alfinetei repostam isso, as pessoas comentam e compartilham, então gera, sim, um grande engajamento. As coisas têm uma velocidade absurda. Por mais que dez anos atrás você tivesse o Pay Per View na TV a cabo, ninguém colocava o que acontecia ali no Twitter, no Instagram e no TikTok e viralizava de uma forma muito grande”.
“O fato de estar confinado equivale a estar privado de liberdade, de ir e vir. Podemos comparar a um castigo”
Engana-se quem pensa que é fácil participar de um reality. Muitas vezes os participantes acabam esgotando sua saúde mental durante o programa e alguns chegam até a desistir — o caso mais recente é o de Lucas Penteado, da 21ª edição do Big Brother Brasil. É necessário possuir um emocional forte para participar. Sob o ponto de vista da psicologia por trás dos realities, a psicóloga Silvana Mekana comenta sobre como a sensação de solidão pode ser dolorosa para os participantes, e afirma que esse sentimento pode ser prejudicial para a saúde mental deles, levando a brigas, por exemplo.
“O fato de estar confinado equivale a estar privado de liberdade, de ir e vir. Podemos comparar a um castigo, porque a privação é dolorosa.”
Silvana também comenta sobre os conflitos dentro dos programas serem ampliados pela falta de amplitude de soluções — usualmente, após uma briga, toma-se distância da pessoa envolvida na discussão. Isso se torna inviável dentro do reality, visto que os participantes estão confinados 24 horas no mesmo ambiente, sem saída, e sempre com “vários olhares julgadores em cima da sua solução para aquele conflito”. O que reflete, novamente, no estado da saúde mental dos participantes, deixando-os com seus “nervos aflorados”.
Muitas pessoas não gostam desses realities pelo fato de acreditarem que eles não acrescentam nada a quem os assiste. Sobre esse assunto, Silvana traz uma perspectiva que coincide com o ponto de vista anteriormente mostrado por Maria Eduarda, de que é, sim, possível aprender coisas com os realities e trazê-las para a vida real:
“Através das reflexões que o telespectador faz das situações da casa e dos conflitos, acaba refletindo sobre si mesmo e às vezes pode até rever algumas concepções que tem sobre as coisas da vida e as pessoas”.
Além disso, a psicóloga comenta como os telespectadores recebem esse tipo de conteúdo conflituoso e afirma que as pessoas têm a livre escolha de não se envolverem com as discussões da casa, revelando também alguns detalhes sobre sua vida pessoal ao contar que analisa os participantes ao ver os programas. Contudo, conclui dizendo que evita fazê-lo muito, para não perder a diversão de assisti-los.
“Eu acho que nenhum programa tem esse poder de nos alienar”
Os realities de confinamento também podem ser vistos como uma reflexão da sociedade, na qual os participantes trazem diversos temas sociais importantes — como o racismo e a homofobia — para dentro do programa, dando, assim, uma maior visibilidade para esses assuntos do lado de fora da casa. Esses programas captam as pautas da sociedade e colocam um amplificador nelas, e como a televisão ainda tem um grande alcance, muitas pessoas são afetadas diretamente por ela. Veronica Eloi, doutora em Sociologia e Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), realizou uma pesquisa sobre a primeira edição do Big Brother Brasil, realizada em 2002. No vídeo a seguir, ela conta um pouco mais sobre seu trabalho e como analisou esse reality através da sociologia:
Debatendo as questões sobre a alienação gerada por realities, que muitas pessoas ainda acreditam ser um problema que eles causam na sociedade, Veronica possui um ponto de vista discordante da analista de sistemas Marília Lopes. A socióloga explica:
“Eu acho que nenhum programa tem esse poder de nos alienar. O que nos aliena são as nossas próprias escolhas: você não conversar com as pessoas que pensam diferente de você, não ler opiniões diferentes das suas… ou seja, a recusa do diferente aliena”.
Esses realities despertam sentimentos mistos no público e, sobre isso, Veronica discorre um pouco sobre como a sociologia entende a tamanha atração que o público tem por esses programas. Ela afirma que o “gosto”, de acordo com o sociólogo Pierre Bourdieu, se forma através das relações que cada indivíduo vai construindo ao longo da vida. Quanto aos realities, principalmente o Big Brother — que há anos continua sendo um fenômeno —, sua constante reinvenção e adaptação às novas tecnologias é o que mantém os telespectadores interessados. Um ponto importante dessa mudança na forma de se construir esses programas foi claramente observado em suas últimas edições: uma maior conexão entre internet e televisão, além de manter o interesse do público já conquistado, foi importante para atrair uma nova e maior audiência para os realities.
Além disso, Verônica acredita que a imparcialidade não é necessária apenas na profissão de jornalismo, mas também em todas aquelas que envolvem pesquisas. Alegando que cada um tem sua opinião sobre esses realities, a socióloga confirma que precisa se livrar do seu amor por esses programas em razão de seu estudo:
“O pesquisador não pode fazer da sua opinião uma análise, ele precisa tentar separar e ver o programa com olhos mais ‘livres’, sem hostilidade e sem amor, tentando assim uma neutralidade — que é dificílima —, mas que ele consiga relacionar o programa com o tipo de formação que ele tem, e no meu caso é a sociologia”.
Em suas considerações finais, ela diz que se orgulha da televisão brasileira quando ela é usada para discutir pautas fundamentais hoje em dia.
E os índices de rejeição e política do cancelamento?
A cultura do cancelamento cresceu muito com a ascensão do uso das redes sociais e da internet, levando à eliminação de participantes com altos índices de rejeição. No entanto, grande parte das pessoas a vê como algo péssimo para a sociedade. Quanto a esse assunto a opinião foi unânime: o cancelamento está passando dos limites.
Ao ser questionada sobre o assunto, Maria Eduarda comenta:
“Hoje em dia a internet é um pouco rígida demais, qualquer coisa vira uma coisa muito grande, então qualquer coisinha que alguém faz que não está nos valores ou nas regras que as pessoas na internet criaram acaba saindo com um índice muito grande”.
Marília também expressou sua opinião sobre a política do cancelamento:
“O público não consegue separar que existem papéis lá dentro, a pessoa se expõe para tentar ganhar, mas os telespectadores não podem trazer esse julgamento para fora, a não ser que seja algo extremamente sensível, e eu acho que aí não é o público que tem que julgar. Todos os ex-participantes acabam carregando um estigma dos personagens que eles criaram. Até ontem a Karol tinha público, todo mundo gostava dela, mas a partir de hoje ela virou a vilã porque ela falou algumas bobagens lá dentro. Se ela tivesse falado essas bobagens em uma festa, não teria a mesma repercussão que teve no Big Brother”.
Rízia e Marília tiveram visões semelhantes, e a ex-BBB comentou que são muitos fatores que podem levar uma pessoa a ser eliminada com rejeição:
“Pode ser uma besteira ou uma coisa muito séria. Tanto que tiveram pessoas que cometeram absurdos e não saíram da casa com rejeição. Eu mesma tive muito medo de ser rejeitada. Mas é muito difícil falar sobre o cancelamento em si, porque às vezes ele vem como uma onda e acaba com uma carreira. E se for uma coisa muito grave, deixa que a justiça resolva porque o cancelamento na internet já tá indo pra um lado de fazer justiça com as próprias mãos”.
André explicita suas ideias sobre os recordes de rejeição que ele já presenciou:
“Se você parar pra pensar tem torcida mobilizada, gente saindo na rua fazendo buzinaço, com fogos de artifício, é muito intenso pra todo mundo. Então, do que eu vi, foi uma comoção, você via os participantes comovidos por conta da eliminação de alguém que eles acham que é o vilão da temporada, como a Luíza Ambiel de A Fazenda. Eles lá dentro comemoraram horrores, pularam, subiram em cima da mesa, e aqui fora você via as pessoas felizes com a eliminação dela, mas foi isso, acabou e ninguém mais lembra do que aconteceu. Claro que, assim, tem a eliminação da Karol com 99% , que talvez é uma coisa que vá levar mais tempo para as pessoas esquecerem, mas faz parte do jogo, porque ele é intenso”.
Já a psicóloga Silvana foi sucinta em sua opinião sobre o que leva um participante a ser eliminado com altos índices de rejeição:
“O participante demonstrar lados socialmente repreensíveis, lados que a pessoa que vota não aceita em si mesma”.
Para finalizar, Veronica também comentou sobre o assunto: “É muito ruim na internet porque tira a possibilidade de se humanizar, de errar e de acertar”. Ela diz que vivendo nas incertezas — como vivemos — o aprendizado e educação podem vir por meio dos erros, e, quando se cancela e condena alguém, não há a oportunidade de absorver e aprender. Sobre esse tema, a socióloga acredita que aqueles que são cancelados são menos autênticos, afáveis e, de certo modo, expressam aquilo que não faz parte do que chama de “cordialidade brasileira” — o jeito simpático do povo brasileiro.
“Acho que são essas duas coisas: personagens que não levantam simpatia do público e, também, o próprio público que não vê com muito bons olhos o conflito, como se todo mundo vivesse no país das maravilhas.”
Descubra qual dos entrevistados você é!
Agora que você já chegou até aqui, no link abaixo há um quiz para descobrir com qual dos entrevistados você mais se identifica! A telespectadora fiel Maria Eduarda, a hater Marilia Lopes, a ex-participante Rízia Cerqueira, o produtor André H.C., a psicóloga Silvana Mekana ou a socióloga Verônica Eloi? Faça o teste e descubra!