O mundo em São Paulo: afeto e diversidade na gastronomia internacional
Por Ana Beatriz Morrone de Carvalho, Estela dos Santos Braga e Glícia Ferreira de Souza Santos, alunas do 1ºJOB
“Eu acho que o único lugar em que as pessoas se entendem e falam a mesma língua mesmo sem entender a língua um do outro é na mesa de comer.”
É o que afirma Nasrin, iraniana que chegou ao Brasil em 1991 e fez do país seu lar. Nasrin é um exemplo entre tantos de pessoas que vieram de outros países e decidiram mostrar sua cultura aos brasileiros do melhor jeito que podiam: pela comida.
Para ela e tantos outros, a comida é a linguagem mais simples de ser entendida, e se existe uma cidade que exemplifica isso é São Paulo, onde a cada esquina você pode encontrar restaurantes de países e com histórias completamente diferentes. A diversidade cultural de todo um mundo se encontra em São Paulo, onde a relação de afeto entre as pessoas e suas gastronomias se reflete em sabores capazes de dar a alguém cujos pés nunca deixaram o Brasil um vislumbre da vida de quem está a meio mundo de distância.
Pratos refinados se juntam a comidas carregadas de afetividade e compõem um cenário gastronômico com vida própria e fragmentos de cozinhas de todo o mundo. Em meio a tantos guias gastronômicos que indicam os lugares mais renomados para se comer em São Paulo, aqui temos histórias de cultura e afeto que se esbarram em um elemento comum: a comida.
Amigo do Rei: um pedacinho do Irã
“Eu sentia que não podia mais morar lá por falta de democracia, especialmente para mulheres. Aí teve uma revolução cultural que durante quatro anos todas as faculdades ficaram fechadas, eu não pude estudar, então eu decidi sair do Irã.”
A chef Nasrin já tinha experiência na cozinha quando chegou em Paraty (RJ), em 1991, onde conheceu seu marido, Cláudio, teve sua filha, Iramaia, e, em 1998, abriu o primeiro restaurante iraniano do Brasil: Amigo do Rei, por sugestão do marido, como uma fonte de renda extra e, de acordo com Nasrin, para “trazer um pouco desse mistério Irã/Pérsia”. Ela queria que os brasileiros conhecessem, pela comida, um pouco do Irã.
“Eu, desde sempre, fui apaixonada pela comida e pela cozinha. Minha avó botava um banquinho e mandava eu subir e ver como que o arroz deveria ficar para ser pronto.”
Nasrin se abre sobre sua paixão pela culinária, pelo Brasil e pelo Irã com uma sinceridade visível e que dá gosto de ouvir. Quando questionada sobre o nome do restaurante, contou com entusiasmo sua história com o poeta Manuel Bandeira: quando ainda trabalhava como guia turística no Irã, ela levou turistas brasileiros para a antiga cidade de Pasárgada e conta que os turistas começaram a declamar o poema de Bandeira:
“Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei”
(…)
“E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.”
Ela diz não saber o que significava na época, pois não falava português, mas, quando decidiu abrir o restaurante, logo teve a ideia: “É persa. Eu conheço Manuel Bandeira, tem tudo a ver com a minha história e ‘Amigo do Rei’ é um bom nome, e é um dos raros poemas que a maioria dos brasileiros conhece.” Ainda comentou que a língua farsi, ou persa, é a que mais tem versos de poesia no mundo, então a poesia faz parte da cultura oral dos iranianos. “Para mim, além de ser muito bonito, muito extraordinário, ele é um poema muito bonito, aí em homenagem a ele eu botei o nome do restaurante ‘Amigo do Rei’.”
De Paraty, o “Amigo do Rei” foi para Belo Horizonte, em 2001, e, por motivos pessoais e questões financeiras, em 2011, migrou para São Paulo. Infelizmente, por “obstáculos do destino”, o restaurante físico não foi inaugurado ainda.
Nasrin e Iramaia relatam ter medo de ir para São Paulo, porém, ao mesmo tempo que achavam a cidade “aquele bicho-de-sete-cabeças”, consideravam São Paulo o coração do Brasil. “Quando eu era mais novinha, eu lembro que eu escutava muito as pessoas falarem que em São Paulo as pessoas comiam muito fora e gostavam de coisas diferentes, então eu acho que isso faz parte da cultura paulista”, comenta a filha Iramaia, sempre presente nos momentos mais importantes da história da mãe.
Segundo a mãe e a filha, no Irã é muito comum o ato de receber pessoas na sua casa e, para Nasrin, isso fazia muita falta, “porque especialmente em São Paulo as pessoas não fazem isso, ninguém vai para a casa de ninguém com muita frequência, de comer, ficar horas”. Daí veio a ideia de receber os clientes em sua própria casa, enquanto não há restaurante físico.
Em sua cozinha, a chef Nasrin trabalha praticamente sozinha. Tem ajuda, apenas, do marido e da filha, e faz uma comida muito caseira e slow-food, que precisa de tempo e de matéria-prima um pouco mais selecionada e cara.
Sobre o cardápio, Nasrin explica que as comidas são iguais às da casa de um iraniano de classe média, sem adaptação. Num primeiro momento, então, foi montado um cardápio essencialmente caseiro.
“A gente teve que abrir mentes e bocas para novos sabores.”
Entre os pratos, Nasrin destaca o tradicional Fesenjan, um molho de romã com nozes que pode ser cozinhado com diferentes tipos de carne, ou até mesmo sem carne, e dá detalhes de forma a quase nos fazer sentir o gosto: “É um molho bem denso. No início ele tem o tom das nozes, mas depois do cozimento ele fica de um marrom bem profundo, bem terroso”. A cozinheira ainda brinca sobre o gosto agridoce do prato, e diz que tenta não usar o termo, porque “muita gente tem uma questão com o agridoce”. Mas não para por aí: o Fesenjan tem um jogo entre o sabor das nozes e do romã, que traz um toque quase cítrico.
O Amigo do Rei também serve o Ranguinak, uma tâmara recheada com uma noz em um molho cor-de-areia, “e como se não fosse suficiente ainda tem canela e pistache por cima. Esse é o doce. E ele tem uma textura esquisita mesmo, uma textura muito diferente”, completa a chef.
Ainda sobre os sabores tradicionais persas, Nasrin comenta sobre a diferença do uso de elementos como o marmelo e o iogurte na culinária brasileira e iraniana. Ela explica que, lá, o marmelo é utilizado tanto para marmelada e geleia quanto para rechear com cordeiro, fazer guisado ao forno e até fazer suco com açúcar e limão. Já o iogurte, no Oriente Médio, é mais consumido que o próprio leite: “A gente come iogurte, come muita coisa acompanhada de iogurte”. O iogurte sempre vai à mesa temperado, sendo consumido na sobremesa com vários tipos de geleia da época. Ela ainda conta que uma família iraniana consome em média três quilos de iogurte por semana, baldes grandes de iogurte, e deixa claro: “Você não encontra copinhos, iogurte grego, que é o retrato do iogurte, na verdade. Um iogurte de mentira”.
Além do marmelo e iogurte, um dos hábitos iranianos é comprar ervas como hortelã, manjericão, cebolinha, rúcula e rabanete, e levá-las para a mesa. É a erva pura, fresca, não cortada, comida com as mãos diretamente com a comida. “Eu tentei muito introduzir isso, mas não deu certo. Botei um pouquinho no prato de cada pessoa, quando põe o prato na frente eu digo que não é decoração, não é enfeite do prato, que devem comer, tudo voltava para a cozinha.”
“20 anos de divulgação da cultura através da comida.”
“Eu acho até que a pessoa tem o direito de não gostar, mas não tem o direito de não experimentar”, opina Nasrin, que se abre sobre como a culinária tem um sentido muito afetivo para ela, especialmente por morar tão longe de sua terra natal: “E eu acho que o único lugar em que as pessoas se entendem e falam a mesma língua mesmo sem entender a língua um do outro é na mesa de comer”.
Sobre isso, a dona do Amigo do Rei diz acreditar que “não existe culinária boa, culinária ruim, culinária pobre, culinária rica”, mas que cada um tem uma missão na vida e a dela é cozinhar.
Em uma emocionante e descontraída conversa sobre sua relação com o Brasil, Nasrin diz ser um privilégio ter tudo de bom de dois lugares tão diferentes e conta sobre sua homenagem e sua forma de agradecer ao país quando completou trinta anos aqui: “Eu fiz um bolo de castanha de caju com cumaru, isso porque o caju é uma fruta 100% brasileira. Essa é a única coisa que não é iraniana no cardápio, mas eu faço questão de ficar. Um país que me deu uma oportunidade de vida e uma outra identidade, que é uma coisa rara, então eu agradeci assim”.
Daqui a quatro anos, Nasrin terá os mesmos anos de vida no Irã e no Brasil, e diz que, entre os dois países, não tem diferença alguma: “Tanto o Brasil quanto o Irã, para mim, são terras que eu amo, do fundo do coração”.
Miss Saigon: entre o Brasil e o Vietnã
O Miss Saigon se localiza no bairro de Pinheiros e carrega a singularidade de ser um dos únicos representantes da culinária vietnamita na cidade de São Paulo. Os proprietários do restaurante, Phuoc e Sônia, fugiram do Vietnã em 1979, já que o país ainda sofria com as consequências da guerra do Vietnã, e lutaram para sobreviver em um pequeno barco com mais 24 pessoas no Mar da China por quatro noites e três dias, até que fossem resgatados. O filho mais novo do casal, Norman, nos contou um pouco mais sobre esta situação que seus pais passaram há 42 anos: “O processo no começo foi bem difícil, eles estavam fugindo de um país que tinha trocado o regime da época para um regime comunista e eles buscavam liberdade. Além do regime comunista, estavam travando outra guerra, mas contra o Camboja, então eles estavam fugindo da guerra contra o Camboja também”.
Em um dia no qual o mar estava muito agitado, tiveram a sorte de serem resgatados pelo navio José Bonifácio, da Petrobrás, e até serem aceitos por algum país passaram um mês em Cingapura. De lá, foram enviados ao Brasil e receberam auxílio da ONU (Organização das Nações Unidas) por um ano até que pudessem se estabelecer no país e aprendessem a língua portuguesa.
Com a ajuda da ONU, Phuoc conseguiu emprego na Volkswagen, na linha de montagem de pneus para caminhões. Depois, seguiu com empreendimentos na área de confecções de bolsas e mochilas, porém algum tempo depois descobriu que o seu maior dom e a sua grande paixão seriam trabalhar com a gastronomia vietnamita. Dessa forma, também com muitos incentivos de Norman, o Miss Saigon foi criado: “Eu trouxe meus amigos em casa para comer e eles gostavam da comida. Eu falei para meu pai para montar um restaurante e a gente montou em 2013”.
Saigon é um nome que faz referência à região sul do Vietnã, local que serviu de inspiração para o desenvolvimento das receitas do cardápio do restaurante. Na culinária vietnamita, é possível encontrar influências da cozinha francesa, tailandesa e chinesa, fruto da presença dominante dessas nações ao longo da história do país. Porém, atualmente o restaurante também oferece alguns outros pratos da culinária asiática, indo um pouco além de somente receitas do Vietnã .
Eles trabalham com uma grande mistura de sabores, mas esses não são tão marcantes quanto os da culinária tailandesa. Diversos pratos possuem macarrão e arroz como base, sempre com muitos ingredientes aromáticos e a presença quase constante de elementos crocantes.
Os mais consumidos no cotidiano dos vietnamitas são: o phở bò, feito com talharim de arroz, fatias finas de carne bovina, bolinho de carne suína e um caldo aromático temperado com diversas especiarias, um toque de canela, hortelã e manjericão tailandês. Já o chả giò é uma versão de rolinho primavera, feito com massa de farinha de arroz, geralmente recheado com carne de porco moída, que pode ser envolvido por folhas de alface e ser mergulhado em molho de pimenta agridoce. E o bún thịt nướng ressalta as texturas de cada ingrediente e é servido frio com espaguete de arroz, carne suína assada, amendoim, chả giò e um mix de salada verde, além de acompanhar um molho de pimenta agridoce. São pratos leves, com pouco óleo, bastante ervas e especiarias, e que são muito populares no restaurante.
“Acredito que represente bastante a nossa história, mas não só a minha família, como também a cultura vietnamita em geral porque são pratos mais típicos, tradicionais, uma cozinha clássica. A colônia vietnamita nos Estados Unidos, na Europa e na Austrália é bem maior e nós também chegamos a viajar bastante para outros países, antes de abrir o restaurante. A gente sempre comia comida vietnamita fora e até aí não tinha nada de comida vietnamita no Brasil, então selecionamos os pratos que mais vendiam fora, iguais aos que a gente procurava.”
Todo esse diferencial gastronômico do restaurante resultou em um grande sucesso, comprovado pelo alto índice de satisfação dos clientes. Ele entrou para o Hall da Fama TripAdvisor 2019, após conquistar por cinco anos consecutivos o Selo de Excelência TripAdvisor (2015, 2016, 2017, 2018 e 2019). Em 2020 e 2021, o Miss Saigon ganhou o Selo “Escolha dos Viajantes TripAdvisor 2020”, além do Selo Restaurant Guru 2021.
Carlino: o mais antigo de São Paulo
Quando se entra pela pequena porta no número 85 da Rua Epitácio Pessoa, logo se percebe que o lugar é cheio de tradição. A atual casa da cantina italiana Carlino é um salão simples, com algumas mesas e um bar, mas cujas paredes estão cobertas de fotos e notícias que contam a história do restaurante mais antigo de São Paulo.
O Carlino foi fundado pelo italiano Carlo Cechini, em 1881, no Largo do Paiçandu, e lá ficou até a década de 1940, quando ele decidiu se aposentar. Os filhos de Cechini não quiseram assumir o comando do restaurante, então ele foi vendido sob a única condição de permanecer nas mãos de alguém que viesse de Lucca, a mesma província toscana que o dono original. Assim, o comando passou para Marcelo Gianni, que transferiu o Carlino para a Avenida Vieira de Carvalho e lá ficou até 1978, quando vendeu o restaurante para mais um lucchese: Antonio Carlos Marino. Foi Marino quem mudou o endereço do restaurante novamente, chegando à localização atual. Hoje, quem assumiu o comando do Carlino foram Bianca e Bruno Marino, os filhos de Antonio Carlos.
Ao longo dos anos, o Carlino manteve sua fiel clientela enquanto acompanhava o surgimento de muitos outros restaurantes italianos em São Paulo. Para Bianca Marino, a chef Bibi, isso só foi possível porque existem alguns diferenciais.
“Tudo no nosso é artesanal, os pães a gente faz, as massas a gente faz aqui, o cannoli a gente faz aqui, tudo a gente faz aqui. A única coisa que a gente não faz aqui é o sorvete, mas é um italiano amigo nosso que faz. Até os pãezinhos do café minha tia que faz. Então acho que essa coisa de família, de receitas de família, não se perdeu.”
E isso é evidente para quem come no Carlino. O sabor das massas frescas, o aroma dos molhos e até o pão assado na hora têm sabores autênticos que não deixam dúvida da herança italiana de cada prato.
Alguns pratos se mantiveram desde o início do restaurante, como o coelho com polenta e o pappardelle ao ragu de ossobuco, mas o cardápio passou por alterações ao longo dos anos. “Existem algumas coisas que não podem se perder, por exemplo, o tomate, a gente só usa tomate italiano, então tem algumas coisas que a gente não mexe.” Quando questionada sobre a quantidade de mudanças, a chef afirmou que não foram muitas, até porque “os próprios clientes não deixam, eles gostam assim. Tem as pessoas que não mudam de prato, por exemplo. Esse pessoal da idade dos meus pais e os filhos, que vêm desde criança. Eles já têm trinta e poucos anos e até hoje nunca comeram outro prato, só comem a mesma coisa que sempre comeram aqui, ‘já que eu vou lá eu vou comer aquilo, não vou comer outro’ ”.
De fato, além da união que se vê na equipe, o fator que sustenta o Carlino fora da cozinha é a proximidade com os clientes. Bianca e seu irmão cresceram no restaurante. “A gente morava na frente, então ia fazer lição no restaurante, ligava ‘pai, tô com vontade de comer não sei o que’ e ia alguém trazer.” E isso se reflete até hoje no relacionamento entre a dupla e quem frequenta o restaurante: “A gente é meio que amigo dos clientes, tem muitos da idade dos meus pais, os filhos. Somos amigos dos filhos, de se frequentar fora daqui, isso é muito legal. De ter uma coisa mais pessoal”.
Contudo, mesmo com tanta harmonia, o Carlino teve dificuldades para se manter durante a pandemia. “Acho que como a cozinha é mais elaborada, o pessoal não quer pedir pelo iFood, o pessoal gosta de vir comer, até pelo valor, se vão gastar um pouco mais, preferem comer aqui, não querem pedir, então nunca funcionou tanto. A gente tem, claro, mas o que salvou a gente foram as encomendas. A gente tem muitos clientes, muita gente que fala um pro outro.”
Hoje, o salão funciona normalmente e é a imagem perfeita de uma tradicional cantina italiana. A infância no Carlino trouxe o amor pela cozinha, e depois da faculdade de gastronomia — que os dois cursaram juntos — e de ganharem experiência em outros lugares, inclusive na Itália, Bruno e Bianca voltaram para o lar. Ele cuida do bar e do salão enquanto ela comanda a cozinha, e ambos deixam claro o carinho que têm pelo restaurante onde cresceram.
“A gente tem um apego muito sentimental, muito grande. A gente não vê como negócio, a gente vê como quase que uma pessoa, é mais um integrante da família, tenho muito carinho por esse restaurante.”
Entre as muitas histórias que aconteceram no Carlino ao longo dos anos, a primeira que vem à mente de Bianca ocorreu quando era criança e seu pai era o dono.
“ Entrou um moço no restaurante e falou assim: ‘Pode entrar gente doente aqui?’ e meu pai falou ‘Claro’. Aí meu pai falou que tudo bem, que ele achou que ia entrar alguém com cadeira de rodas, ele falou que abriram as duas portas do restaurante e entrou uma cama hospitalar, com soro e tudo, e a mulher tinha pouco tempo de vida e ela tinha uma memória afetiva muito grande de comer no Carlino, e as coisas que ela queria meu pai lembrava até hoje que ela tinha comido. Meu pai lembrava até a marca da água, água Minalba, ele lembrava de umas coisas assim. E aí ele acabou fechando o restaurante só para ela. Era uma noite e ele fechou o restaurante para deixar ela à vontade, ele fechou as portas e a gente atendeu ela naquela noite.”
Esse cuidado que se vê tanto nos pratos quanto com os clientes definitivamente é a marca registrada do Carlino. O carisma da equipe traz alegria a quem está no salão, criando um ambiente familiar até para quem visita o Carlino pela primeira vez. O encontro da tradição italiana com a modernidade de São Paulo é o que se pode esperar de uma visita ao restaurante mais antigo da cidade. Se você fechar os olhos, sentirá que está na Itália.
Jerky’s: o verdadeiro “jazuca”
Sabe aquele churrasco de rua que cheira longe e abre o apetite? Na Jamaica, ele é chamado de jerk, e foi trazido ao Brasil no primeiro e único restaurante caribenho do país. Mas existem algumas diferenças entre o jerk e o churrasquinho que conhecemos. Em primeiro lugar, a qualidade mais marcante desse prato que representa o Caribe é a mistura de temperos que o condimenta, o jerk propriamente dito, que consiste em duas combinações diferentes de cerca de quinze especiarias nas quais o frango é marinado antes do cozimento. Essa é a outra diferença: aqui, o churrasco é de frango.
Assim como na Jamaica o jerk é uma comida de rua, servida em papel- alumínio cortado para o público noturno, em diversos lugares ao redor do mundo essa tornou-se uma comida do dia a dia. E por que não trazê-la ao Brasil?
O idealizador por trás do Jerky’s, Andre James, nasceu e cresceu na Jamaica até 2010, quando, aos dezenove anos, veio ao Brasil para estudar Odontologia na USP por meio de um programa estudantil chamado PEC-G (Programa de Estudantes — Convênio de Graduação). Quando chegou, James aprendeu português e tinha planos de viver nos Estados Unidos após sua graduação, mas o Brasil o encantou e ele decidiu ficar.
“Fiz todo esse processo para fazer minha transição do Brasil pra lá, mas decidi que amava muito o Brasil, eu gostava muito da minha vida aqui e não queria abrir mão disso. Mas sabia que a odontologia não iria fornecer o tipo de vida que eu queria, pelo menos no Brasil não iria fornecer isso, então eu decidi migrar para a área de empreendedorismo. Então, eu falei que iria virar empresário aqui no Brasil e percebi que o mercado de gastronomia do Brasil é um mercado muito fértil, pouco explorado.”
Assim surgiu a ideia do Jerky’s, que trouxe ao Brasil um pedaço do mundo que faltava em nossa paisagem gastronômica. Quando chegou ao Brasil, James se viu cercado de pessoas do mundo inteiro, mas sem ninguém que fosse do Caribe. Já em 2012, a ideia pairava em sua cabeça como uma brincadeira, que foi se concretizando conforme seu tempo aqui transcorria. Em seu penúltimo ano de faculdade, a ideia foi tomando forma como uma possibilidade real, e quando James decidiu ficar no Brasil, já tinha um plano estabelecido para abrir sua rede de restaurantes.
Demorou, mas o plano se concretizou e, em 24 de julho de 2020, o Jerky’s nasceu. A ousadia é uma característica marcante de James, que, além de ter como objetivo “mudar a paisagem gastronômica da cidade e do Brasil”, deu início a esse plano audacioso em meio à pandemia da Covid-19, em um momento em que os restaurantes lutavam para se manter abertos — e muitos acabaram perdendo a batalha. Felizmente, a época trouxe a ascensão dos pedidos por delivery devido às proibições das atividades presenciais, o que atraiu alguns clientes mais curiosos, mas não foi garantia do sucesso financeiro.
“Teve dias que a gente vendeu o suficiente, mas foi bem difícil. Entretanto, o fato que somos o único restaurante que vende esse tipo de comida deu um destaque para a gente nas redes, então a gente tinha bastante destaque, as pessoas estavam animadas, animadas para provar a comida, isso ajudou a gente. Eu acho que se não fosse o fato de ser um restaurante jamaicano, o único restaurante jamaicano no país, eu acho que a gente não iria sobreviver à pandemia pra falar a verdade, à quarentena, mas foi muito difícil.”
Felizmente, o cardápio agradou, assim como James havia previsto, e logo foi possível que o Jerky’s inaugurasse fisicamente. Os poucos pratos servidos cumprem a proposta de misturar o conhecido com o exótico, que foi exatamente o que atraiu os brasileiros, que constituem a maior parte da clientela. Frango, arroz e feijão são coisas que se pode encontrar diariamente nos lares brasileiros, mas até então não se tinha conhecimento de um frango com um tempero tão diferenciado, ou de um arroz caribenho que combina o arroz ao feijão vermelho, complementando os sabores do frango. As porções servidas não se limitam à tradicional batata frita, mas também incluem batata-doce e banana da terra, acompanhadas de uma maionese caribenha caseira. James também implementou opções sem carne, de berinjela e abobrinha, o que não é costume na Jamaica, mas ele sabia que seria bem recebido pelo público brasileiro.
O conceito por trás do Jerky’s é a proposta “jazuca” do fundador, a combinação de Jamaica e brazuca. Desde as cores vibrantes usadas no restaurante até a embalagem para delivery, que mostra carimbos postais do Brasil e da Jamaica lado a lado, a proposta do Jerky’s é implementar o jamaicano ao brasileiro e vice-versa, dando origem a uma nova cozinha que cresça por si só.
“Comida é cultura, comida é história, comida é geografia, comida é sociologia, é uma razão pela qual jerk surgiu na Jamaica e não surgiu no Brasil, é uma razão pela qual feijoada surgiu aqui e não na Jamaica, então são vários contextos históricos para isso. Nossa dificuldade era como a gente poderia transplantar uma coisa que o brasileiro não entende e nossa solução foi trabalhar em cima de cruzamentos culturais como pilar de nossa marca e esses cruzamentos não são necessariamente em relação a comida, nossa marca trabalha muito em coisas que todo mundo entende como ser humano: felicidade, familia, grupo.”
E a ambição de James é incorporar o jerk ao inconsciente da culinária no Brasil, fazendo do Jerky’s uma rede que se espalhe por todo o país e, eventualmente, pela América do Sul, virando uma rede, e depois uma franquia.
Ser o primeiro e único restaurante jamaicano no Brasil também é algo que enche de orgulho e motiva o fundador do Jerky’s, que tem como objetivo incorporar o jerk à cultura brasileira de forma que, em algum momento, seja como a pizza, e as pessoas comam sem nem mesmo pensar que se trata de uma comida estrangeira. Para James, isso é sua missão de vida.
Assim como Nasrin, que veio do Irã e não olhou para trás, James não considera mais a Jamaica sua casa. Para ele, é difícil se sentir em casa em seu país de origem, já que passou toda sua vida adulta no Brasil, que é onde, hoje, ele faz planos e sonha com a inovação. Da mesma forma James não se sente 100% brasileiro, e afirma viver em uma espécie de limbo cultural, que foi sua motivação para criar sua própria cultura.
“É muito estranho dizer isso porque eu me sinto em casa no Brasil, o Brasil é minha casa. Eu sinto saudades dos meus amigos, às vezes da comida, mas não da Jamaica, da minha família, mas não da Jamaica, não do país. Mas eu falo que casa é onde você conquista as coisas, não é onde você nasceu. Então é isso, o Brasil é contexto para o que eu sinto, porque minha vida na Jamaica não foi uma vida legal, foi horrível, na verdade. E, mudando para o Brasil, minha vida melhorou de um jeito exponencial. Óbvio que tem racismo, e tem xenofobia em vários sentidos, mas eu não consigo falar mal do Brasil, porque o Brasil me deu muito mais e fez muito mais coisas legais por mim do que coisas ruins, então é por isso que eu tenho esse tipo de afeto com esse país, um tipo de afeto que eu não tenho com a Jamaica. Obviamente a Jamaica está no meu coração e não vai sair, só que eu vejo o Brasil como o país que me deu uma chance para viver com dignidade, que me deu uma chance para virar ‘alguém’.”
Não é preciso ter uma bola de cristal para ler a motivação estampada no rosto de James, e, se depender disso, o sucesso do Jerky’s já é uma certeza.