Das feiras populares ao hambúrguer do futuro: seria a alimentação vegana acessível para todos?
Por Camilla Guerreiro, Catarina Nestlehner, Gabriel Borgonovi, João Pedro Haiter, Letícia Iervolino e Maria Clara de Matos, alunos e alunas do 1° JOB
E m um ambiente iluminado, disposto de corredores e prateleiras lotadas, embalagens de plástico e vidro destacam o selo verde da Sociedade Vegetariana Brasileira. Nas partes traseiras ou frontais dos produtos, etiquetas amarelas, exibindo com números grandes em um preto brilhante, expõem o alto valor das comidas e assustam os que vão ao supermercado, estimulando assim a crença de que não é possível gastar pouco com uma alimentação vegana.
Entretanto, Caroline Beskow, nutricionista em atendimento materno-infantil que realiza trabalho voluntário na Sociedade Vegetariana Brasileira, contesta o pensamento enraizado: “Existem alimentos com valor mais alto e as pessoas acabam generalizando isso, enquanto uma alimentação saudável acaba sendo superbarata e acessível”. Ainda no mercado, uma variedade de cores, como o vermelho, amarelo, verde, laranja e roxo chama a atenção. Ali, é possível encontrar frutas, legumes e verduras, componentes primordiais da alimentação à base de plantas, muitas vezes esquecidas e ofuscadas quase que ironicamente pelos industrializados “vegetais do futuro”.
“É superpossível uma alimentação vegana ser saudável e barata”, continua Caroline Beskow. Para ela, o que encarece a alimentação vegana são os produtos industrializados e ultraprocessados, presentes nas prateleiras e freezers dos supermercados. “Obviamente, esses alimentos serão mais caros, mas, focando em uma alimentação mais natural possível, vai ser bem mais barato do que quem consome carne.”
Em 2014, foi publicado o Guia Alimentar da População Brasileira. Ele condenava os ultraprocessados, ou seja, alimentos com processamento industrial, que são os que mais precisam ser evitados. É o que explica Cristiana Maymone, nutricionista e doutoranda em Saúde Pública:
“Os alimentos que mais precisamos estimular na nossa alimentação são os in natura, minimamente processados e baseados em vegetais. Então, sem dúvida, dá pra se alimentar bem com os alimentos in natura, só que, no contexto político atual, qualquer cenário vai ter um custo elevado”.
Apesar disso, pessoas em transição para o veganismo têm dificuldades em se alimentar da forma correta. O processo pode ser lento, com recaídas e problemas para descobrir como se nutrir adequadamente depois de anos em um ambiente familiar e social rodeado de carnes, leite e ovos. Caroline Beskow afirma:
“O ideal é consultar um nutricionista quando a pessoa já estiver em transição para fazer da forma correta, tanto para o vegetarianismo quanto para o veganismo”.
Ainda segundo a voluntária da Sociedade Brasileira Vegetariana, a alimentação vegana, se realizada do modo correto, já consegue suprir todos os nutrientes de produtos à base animal e, se for necessário, é possível que o nutricionista recomende suplementações.
“A alimentação vegetariana consegue cobrir tudo. Consumir mais grãos integrais, frutas e verduras, que é o que toda pessoa deveria consumir, é tranquilo de atingir todos os nutrientes e também é acessível para todas as pessoas, até para as de baixa renda”.
Idealizado em 1944 pelo britânico e defensor dos direitos dos animais Donald Watson, o movimento vegano cresce cada dia mais no Brasil. Um estudo produzido pela Veganuary em conjunto com a Mintel Consulting revelou que no país o aumento da oferta total de produtos veganos cresceu 2% nos últimos quatro anos.
O Instituto Ipsos afirmou também que 28% dos brasileiros têm procurado comer menos carne durante as refeições diárias. Além disso, segundo a Sociedade Vegetariana Brasileira, é possível construir projeções sobre a porcentagem de veganos no Brasil (dentre vegetarianos) a partir de informações coletadas em países onde pesquisas sobre o censo dessa comunidade foram conduzidas, como Estados Unidos e Reino Unido. A partir disso, a organização nacional apontou em 2018 que dos 30 milhões de brasileiros vegetarianos cerca de 7 milhões seriam veganos.
Entre esses prováveis 7 milhões de veganos, existem crianças que se alimentam através de uma dieta livre de crueldade animal. Pensando nisso, a proposta da Animal Friends, uma escola infantil, bilíngue e vegana localizada longe do centro de Porto Alegre, é ensinar sobre o estilo de vida cruelty free para a nova geração. O ambiente possui árvores e hortas que remetem a comida à base de plantas, e as crianças aprendem como comer saudável e a cozinhar na prática durante as aulas de educação ambiental.
Caroline Beskow trabalha nessa escola alternativa, elaborando o cardápio dos alunos de 0 a 5 anos e 11 meses de idade. “Atendemos crianças vegetarianas, veganas e que consomem carne também, mas oferecemos uma alimentação totalmente vegana na escola, sem glúten e sem açúcar”, afirma.
Segundo a nutricionista, as crianças não têm dificuldades em aceitar o cardápio elaborado por ela, que é “totalmente regulamentado pelas normativas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, garantindo todos os nutrientes que as crianças precisam”. Além disso, Beskow afirma que os alunos da Animal Friends costumam ser ativos e normalmente não apresentam dificuldades na hora da refeição proposta.
“Claro que, como todas as crianças, cada uma tem os seus gostos particulares, mas no geral elas aceitam muito bem a alimentação.”
Apesar de trazer aprendizados práticos e diversificados para as crianças, a escola vegana pode não ser considerada acessível para muitos públicos, já que é uma instituição particular de ensino. Entretanto, para aqueles que desejarem educar os filhos desde cedo sobre a importância da preservação animal na sociedade existe um programa criado desde 2011 pela Sociedade Vegetariana Brasileira, uma organização sem fins lucrativos que, na definição dada em seu próprio site, promove “a alimentação vegetariana como uma escolha ética, saudável, sustentável e socialmente justa”. O programa é chamado Alimentação Escolar Vegetariana, no qual os alunos frequentadores das escolas municipais de São Paulo têm a opção de se alimentarem através de um cardápio vegano.
Atualmente, de acordo com a SDV, no Brasil existem mais de 3.500 estabelecimentos que oferecem pelo menos uma opção vegana no cardápio. Nos supermercados brasileiros, é possível encontrar muitas versões veganas de produtos cárneos e lácteos, como nuggets, presuntos, kibes, coxinhas, salsichas, linguiças, sorvetes e requeijões. Além disso, empresários do setor de produtos veganos consultados pelo jornal Folha de S.Paulo afirmaram que, apesar da atual crise econômica do país, o crescimento do mercado de produtos veganos no Brasil tem sido da ordem de 40% ao ano.
Pop Vegan e a tímida face do veganismo acessível
A dona Carol Caliman não estava presente no dia da nossa visita. A fachada do seu restaurante, situado em uma rua vazia na Consolação, revelava ao mesmo tempo um local inóspito e agradável: um espaço com paredes escuras sob uma tenda, logo abaixo de uma casa azul-bebê com janelas de pontas redondas, dando ao tom um encaixe atrevido e sensível. Assim como, talvez, a ideia por trás do empreendimento — um buffet livre, no valor de quinze reais, sem a existência de carne e quaisquer outros produtos de origem animal.
Dentro do edifício, diversas mesas com pratos coloridos, compostos por grandes porções de feijão vermelho, farofa crocante de soja, primavera de legumes e carnes vegetais ao molho madeira enchiam os olhos e os sentidos de qualquer faminto que passasse na saída do trabalho.
Com uma camiseta verde e olhos alegres, Rosângela, vegetariana restrita e representante do RH do Pop Vegan, acredita que o espaço é digno do nome. “O público é geral. Desde uma criança, que vem com os pais, até mesmo pessoas idosas. Claro que o nosso público é de pessoas mais jovens, mas cabem todas as idades e todos os gêneros, é um espaço aberto.”
Apesar da fala de Rosângela, é possível, quase que instintivamente, notar um certo padrão nos clientes. Cabelos coloridos, piercings, tatuagens e um perfil que parece datar entre vinte anos — essa é, de fato, a maioria do público presente. Dois senhores de idade se destacam em meio à multidão de jovens. Do outro lado, um rapaz musculoso e alto vestindo uma regata também destoa do público original.
Moradora da Zona Leste, bem distante dos arredores da Velha Augusta com suas cantinas, bares e cafeterias pomposas, Rosângela tampouco sai de casa todos os dias para comer em lugares com o cardápio à base de plantas. Segundo ela, sua rotina alimentar é subsidiada pela parte do salário gasto nas feiras mais próximas de casa, onde supre todas as suas necessidades, com o preço variando entre 300 e 400 reais.
Hambúrguer vegano: prejuízo para o bolso?
A Vila Madalena é conhecida por muitos paulistas, e também por não paulistanos, como o bairro mais boêmio da cidade de São Paulo, já que a sua mancha de lazer se estende entre os diversos bares e restaurantes diferenciados, além dos espaços verdes que foram arquitetados na forma de praças e ruas arborizadas.
Nesta realidade aparentemente encantadora, muitas vezes oposta à agitação da metrópole, existe um pequeno restaurante vegano localizado na Rua Delfina, número 101. Diferentemente dos outros estabelecimentos daquela região, o espaço simplista e mais discreto pode talvez passar despercebido pelo andar apressado de um transeunte qualquer, tendo em vista a sua timidez perante aos demais ali também localizados.
O Peace Burger nasceu com a finalidade de fugir do estereótipo rígido do “ser vegano é ser saudável”. Mas seria mesmo possível desvincular esses dois conceitos? Segundo Jessica Paschoal, a dona do simpático restaurante à plant-based, quando ela e o irmão decidiram abrir o comércio, quebrar o tabu do veganismo era, na verdade, o principal objetivo. Oferecer hambúrgueres que saciassem a fome e, além disso, criar produtos que fossem tão parecidos quanto aqueles feitos com produtos de origem animal são as principais propostas do aconchegante deque colorido a céu aberto que iniciou os serviços durante a pandemia.
Ao adentrar o estabelecimento, cadeiras das mais variadas cores, como azul, amarelo e vermelho, se agrupam em duplas ou em quatro para se disponibilizarem às mesas de madeira clara e rústica que irão apoiar os pedidos feitos pelos clientes famintos por um hambúrguer sem crueldade animal.
Rosa, amarelo e verde são cores pouco convencionais quando se pensa em um hambúrguer, entretanto são elas que dominam os pães do Peace Burger e que acabam transformando o pequeno restaurante paulista em uma referência entre os veganos da região. Futuro Cheddar Bacon, Avocado Love e Sunset Peace possuem “carne” feita de grão-de-bico, bacon preparado a partir de um pedaço de inhame e queijo vegano que aparenta ser realmente um queijo comum.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), São Paulo suporta cerca de 365 mil famílias que sobrevivem com uma renda familiar mensal de até R$ 77,00 per capita. Paradoxalmente, esta também é a cidade onde é possível comer o hambúrguer de carne mais caro do país, o Ezekiel 25:17 do restaurante Big Kahuna Burger, por R$ 118,80. A partir disso, seria realmente viável considerar a lanchonete vegana da Vila Madalena acessível para todos? Jessica Paschoal afirma:
“A gente consegue hoje ter um preço um pouco mais em conta porque somos nós mesmos que produzimos os hambúrgueres. Querendo ou não, estes são produtos que não são extremamente caros. Mas o queijo vegano é uma coisa bem mais cara, que tem um custo alto. Os hambúrgueres que imitam carne já são um pouquinho mais caros também, porque existe uma indústria, uma tecnologia por trás que faz com que ainda não se consiga reduzir muito o preço. Por mais que eu acho que daqui alguns anos já vai diminuir bastante”.
O restaurante possui um lanche no valor de R$ 15, o que pode ser vendido como acessível. Entretanto, o Smash do Futuro é o menor dos lanches disponíveis no cardápio e não inclui acompanhamento algum. Caso o cliente queira ter uma “refeição completa”, com hambúrguer, batata e bebida, precisará desembolsar mais, o mesmo quanto às sobremesas, que, apesar de deliciosas, também se distanciam da temática da acessibilidade e das camadas mais pobres da sociedade vegana.
Acessível para quem?
Entretanto, mesmo com a popularização midiática do veganismo na saúde corporal, a influenciadora Ellen Monielle diz que não esperava chamar a atenção dos internautas com a rotina alimentar. Em seu perfil no Instagram, seu heterônimo virtual eco.fada conta com cerca de 41.200 seguidores que acompanham o cotidiano dessa potiguar de 22 anos. Mestranda em Gestão Pública e Cooperação Internacional, ela esteve recentemente na vigésima sexta Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, na Escócia, onde foi convidada, com outras três brasileiras e influencers, a participar do evento. Assim, em uma live salva no seu perfil do quarto dia da COP, Ellen prepara o café-da-manhã em um apartamento, beliscando nozes e contando suas percepções da vida alimentar na Escócia e da conferência até então. De forma despojada, fala sobre o encontro com o fotógrafo Sebastião Salgado e as contradições do evento em si, como a discrepância visível entre o cenário geopolítico.
Já no cotidiano virtual, suas publicações variam entre pratos coloridos, vídeos sobre oligopólios alimentares e os impasses para a popularização do veganismo no Brasil. Com calma, fala sobre como essa dieta popular vem se complicando ao passo que ganha o suporte das redes sociais:
“É uma coisa do Instagram mesmo, das redes sociais, de fazer os movimentos despencarem”.
Para ela, a midialização transformou o veganismo moderno em um tópico exclusivamente sobre a alimentação, ao filtrar todo seu conteúdo político e militante, tornando influenciadores reféns de um algoritmo que derruba menções a conteúdos como a luta contra o racismo, as ocupações de terras não utilizadas e a insegurança alimentar.
Todavia, as redes e os algoritmos não são os únicos que representam uma ameaça à acessibilidade do veganismo, seja ela econômica ou social. O racismo e a xenofobia, ambos sofridos pela influencer e acadêmica, são pouquíssimo comentados dentro do movimento em si. Com receio, Ellen conta de uma desavença teórica que um amigo teve com outros adeptos do veganismo. “Um coletivo vegano ameaçou ele e os amigos dele, falando que iriam processar e se encontrassem a gente na rua iriam meter a porrada”, revela, desmascarando uma face até então desconhecida. Além das ameaças, comenta que já recebeu diversos comentários xenofóbicos em vídeos que postou que buscam deslegitimar sua inteligência. “E aí eu fiz um teste, e tirei o nome ‘veganismo’ da minha bio e esses casos diminuíram muito”, comenta.
Acima de tudo, Ellen é contra dicas e receitas prontas quando se diz respeito à transição para o veganismo. Para ela, cada um tem o seu tempo, principalmente quando existe uma limitação financeira. Assim, apressar ou criticar uma parcela considerável da população com base em argumentos que digam respeito ao “amor animal” não deve ser sequer considerado. Um levantamento feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) revelou em 2021 que a pobreza triplicou no Brasil, atingindo cerca de 12,8% dos cidadãos — quantos desses poderiam, então, mudar de rotina bruscamente sem nenhum preparo financeiro adequado? “E você não pode chegar pra uma pessoa e falar sobre ‘se tornar vegano pelos animais’… A pessoa não tem nem o que comer durante o dia”, enfatiza a influenciadora.
Por outro lado, de acordo com Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), existem mais de oitocentas feiras orgânicas espalhadas pelo Brasil. Ellen e Rosângela fazem parte dos cidadãos, veganos ou não, que têm suas raízes alimentares fincadas nestes ambientes. “Eu moro num centro urbano, e moro perto de uma feira. Então pra mim é muito mais fácil, é praticamente na rua todo domingo”, diz a comunicadora digital, que revela gastar entre 250 e 300 reais por mês com suas compras.
A tradição secular das feiras livres no Brasil é popular desde seu início, no período colonial brasileiro. O Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) revela que, em muitas localidades no interior do país, as feiras livres são os únicos locais de comércio da população, assim como um lugar de cultura e lazer.
Ser ou não ser vegano, eis a questão
De acordo com um estudo publicado pela revista científica British Medical Journal, o vegetarianismo reduz riscos de algumas doenças como as do coração. Porém, na outra mão, esta mesma dieta pode aumentar os riscos de derrame em um indivíduo, já que diminui a quantidade de vitamina B12, vitamina D e de colesterol.
Para Caroline, ser vegano tem algumas vantagens: “Já tem estudos demonstrando que crianças vegetarianas e veganas que têm uma alimentação à base de plantas são mais saudáveis que as crianças que consomem carne, porque isso vai muito mais além do que a criança está consumindo. E também, eles demonstraram que pessoas vegetarianas de uma forma geral têm menos doenças do que quem consome carne. Já se sabe que reduz as chances de terem diabetes tipo 2, doenças cardíacas e alguns tipos de câncer”.
Existem dentro do movimento que luta pela causa animal contradições sobre saúde, posicionamentos políticos e raciais, além de valores econômicos. Mas, com o desemprego recorde, a inflação alta e o Brasil estando novamente no mapa da fome no mundo, alimentar-se a partir de vegetais pode ser uma alternativa para muitos dos mais de 14,5 milhões de pessoas em extrema pobreza, principalmente com a alta no preço da carne. Ellen Monielle, que viveu na pele a desigualdade em todas as suas formas de expressão presentes no veganismo, afirmou que pessoas da periferia poderiam ser contempladas com o cardápio que extrai da terra o seu sustento:
“Com certeza uma pessoa de baixa renda pode ser vegana, mas dentro disso não posso falar que existem exceções, como tudo nesta vida. Tem muita gente dentro do movimento que acaba não enxergando diferentes perspectivas da vida de uma pessoa pobre, favelada ou periférica. Então, eu acho que temos que avaliar casos e casos, e sobre eu ser vegana, para mim é bem acessível. Agora, se você for comprar as coisas que são realmente caras, industrializadas e ultraprocessadas, irá sair da realidade de muita gente e vai sair muito caro”.